18 de junho de 2021

Para especialista, serão necessários esforços conjuntos e articulados para enfrentar a gama de desafios aprofundados à educação pela pandemia de Covid-19

Atualmente, escolas por todo o Brasil lidam com questões relacionadas a acesso à tecnologia, déficit de aprendizagem agravado pelo fechamento de escolas, aumento de questões socioemocionais entre estudantes e professores e outros pontos que devem ser observados a partir de agora. 

 

IA Entrevista MARIA AMABILE

*Esta é a segunda reportagem da série de entrevistas com especialistas com o objetivo de aprofundar debates sobre temas de atuação do Instituto Alcoa: Geração de Trabalho e Renda, Educação e Engajamento Social. A cada mês, uma nova entrevista será publicada no site e no Facebook do IA. Acompanhe e divulgue.

 

Um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) é a promoção de uma educação inclusiva e equitativa de qualidade, bem como de oportunidades de aprendizagem para todos e todas ao longo da vida (ODS 4). 

É na escola que as crianças têm contato com outras pessoas, muitas vezes com culturas e vivências diferentes, aprendem sobre valores e, no caso do Brasil, é onde muitos estudantes fazem a principal refeição do dia, o que denota a multiplicidade do papel das instituições de ensino no país.

De acordo com o Censo GIFE, o investimento social privado (ISP) brasileiro está mobilizado para a pauta, sendo esta, há anos, o principal foco de investimento de institutos, fundações e empresas. 

É o caso do Instituto Alcoa, que acredita na importância dessa agenda para a promoção de uma sociedade cada vez mais justa e menos desigual e, por isso, tem a educação como um de seus pilares de atuação. Entre as ações desenvolvidas, está o Programa Ecoa. 

Criada em 2011, a iniciativa foi reformulada em 2020 a partir do diagnóstico das demandas para melhoria da educação pública no país. Atualmente, o programa atua em duas frentes. O Ecoa Formação, realizado em parceria com o Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC), visa capacitar e assessorar as equipes técnicas das secretarias de educação dos três municípios onde o IA atua (Juruti/PA, Poços de Caldas/MG e São Luís/MA), bem como educadores das escolas participantes, em avaliação e nas disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática. Já o Ecoa Gestão, realizado em parceria com a Interação Urbana, tem como objetivo o desenvolvimento de competências entre as equipes técnicas das secretarias municipais de educação e dos gestores escolares dos três municípios de abrangência do programa.

Para aprofundar o debate em torno dos desafios da educação frente à pandemia, o Instituto Alcoa conversou com Maria Amabile Mansutti, consultora de tecnologias educacionais do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC). Confira a seguir a entrevista. 

 

Instituto Alcoa: Quais são os maiores desafios no campo educacional considerando o contexto brasileiro? 

Maria Amabile: O maior desafio é combater as desigualdades educacionais que persistem na educação pública brasileira e restringem as possibilidades de desenvolvimento de milhares de crianças, adolescentes e jovens. Ainda temos que garantir o direito de escolaridade e aprendizagem para todos, ofertar a cada estudante uma educação de acordo com suas necessidades e avançar no respeito à diversidade e valorização dos saberes e vivências culturais que marcam a identidade de um indivíduo ou de um grupo. Para enfrentar essas adversidades, é necessário intervir com ações efetivas em várias dimensões, como na organização das escolas, nas condições de trabalho, na produção de recursos pedagógicos de qualidade e na atratividade da escola para os estudantes. 

 

Instituto Alcoa: Ao cenário de pandemia soma-se o fato de que o Brasil enfrenta desafios como o déficit de aprendizagem em alfabetização e os déficits de aprendizagem que geram a distorção idade-série. Qual é a situação atual no país nesses dois indicadores? 

Maria: Esses déficits são a causa de um alto nível de exclusão de estudantes, mesmo que eles se mantenham na escola, e são determinantes quando eles decidem abandoná-la. O Indicador de Alfabetismo Funcional [INAF 2018] aponta que cerca de três em cada dez brasileiros têm muita dificuldade para fazer uso da leitura e da escrita. Embora tenha avançado nos últimos anos, a situação atual da alfabetização mostra que há problemas a serem enfrentados. Pelos dados apresentados, pode-se deduzir o quanto é urgente o investimento na formação de professores alfabetizadores para que crianças e jovens possam desenvolver a proficiência leitora e escritora necessária para usufruir, com autonomia, de práticas sociais de leitura e escrita que circulam na sociedade. 

 

Instituto Alcoa: Qual é o cenário atual de políticas que têm a alfabetização e distorção idade-série como temática? 

Maria: O Cenpec fez uma análise que mostra que as bases legais, teóricas e práticas seguidas pela Política Nacional de Alfabetização [PNA], do Ministério da Educação [MEC], nunca foram adotadas por nenhuma política pública na educação brasileira. A PNA impõe um sistema único de alfabetização e omite legislações e pesquisas construídas com a participação de especialistas e estudiosos da área, como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil [DCNEI] e a Base Nacional Comum Curricular [BNCC]. Nas últimas décadas, nenhuma política pública impôs um sistema único de alfabetização. As escolas públicas escolhem com autonomia as metodologias norteadoras de suas ações, sempre com base em princípios, normatizações e pesquisas. Uma política que rompe totalmente com as bases legais, teóricas e práticas, como acontece com a PNA, não tem um alicerce sólido para se sustentar e, nesse caso, uma implementação forçada pode ter consequências bastante desastrosas para a educação pública do país. 

Quanto à distorção idade-série é importante lembrar que nos anos 90, tivemos bons programas de correção de fluxo escolar, mas ao longo de mais de 30 anos não conseguimos acabar com ela. Embora as taxas tenham diminuído nos anos iniciais do Ensino Fundamental, aumentaram significativamente nos anos finais e no Ensino Médio. Segundo o Censo Escolar 2020, a taxa de distorção para o Ensino Fundamental é 16,2% e no Ensino Médio de 26,2%. As maiores taxas são encontradas no 6º, 7º e 8º anos, com 27,6%, 27,9% e 26,1%, respectivamente. Em alguns estados são encontrados índices acima de 30% no Ensino Fundamental e acima de 40% no Médio. A experiência do Cenpec tem mostrado que, apesar dos altos índices de distorção serem recorrentes, as iniciativas para minimizar o problema ainda são bastante tímidas e a gestão institucional em nível nacional é omissa em buscar soluções efetivas para resolvê-lo. 

 

Instituto Alcoa: A pandemia de Covid-19 aprofundou as desigualdades sociais que já existiam no país. Como é possível começar a pensar no contexto de recuperação da aprendizagem?  

Maria: Ainda não conseguimos dimensionar todo o impacto que a pandemia provocou na educação, mas é fato que efeitos negativos já podem ser sentidos e que já sabemos que há muito o que recuperar. Uma primeira decisão é a de compensar déficits de conteúdos que não foram consolidados em 2020. Já convivíamos com essas necessidades antes da pandemia, mas hoje elas assumem novas dimensões. Tanto na percepção dos professores, que retomam o convívio com os estudantes, quanto nas análises e estudos realizados por especialistas, os efeitos causados pelo longo período de afastamento da escola não são sentidos apenas na regressão da aprendizagem, mas em um grande comprometimento do desenvolvimento dos estudantes, não só cognitivo, mas também físico, emocional e até espiritual e, consequentemente, no desenvolvimento das formas de inteligência características dessas dimensões.  

 

Instituto Alcoa: Para além do conteúdo curricular, o que é necessário prever no processo de recuperação?  

Maria: Qualquer programa de recuperação que busque compensar conteúdos não pode deixar de considerar que é fundamental promover um processo de ressocialização dos estudantes, que os ajude a trabalhar com suas emoções, com a reconstituição de vínculos, sobretudo com professor e colegas, com a autoestima, com o convívio com rotinas, normas, valores e com o sentido da própria vida. Isso certamente irá exigir muito dos professores, que terão que experimentar novas formas de ensinar, novas práticas pedagógicas para lidarem com a revisão dos currículos, com o uso de recursos digitais para o ensino online, com a necessidade de atendimento individualizado diante da heterogeneidade nos níveis de aprendizagem de cada turma e com a atratividade da escola e dos estudos. Há tempos se diz que a escola tem que se reinventar e agora isso precisa ser feito sob a ordem da urgência. A forma hegemônica e monopolizada da escola, com sua estrutura e organização ordenadas, seus processos pedagógicos, seus sistemas de avaliação, suas formas de estabelecer vínculos relacionais, terão que ser revistos. Os programas de recuperação da aprendizagem, que já começam a ser postos em prática e continuarão certamente por longo tempo, não podem perder isso de vista. 

 

Instituto Alcoa: A falta de acesso a tecnologias - sejam softwares, aparelhos ou sinal de internet - dificultou que milhares de estudantes brasileiros pudessem acompanhar as aulas à distância durante a pandemia. Nesse sentido, quais são algumas estratégias para promover o acesso a sinal, equipamento e expertise para o uso, seja de alunos e também de professores? 

Maria: Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], uma em cada quatro pessoas no Brasil não tem acesso à internet. Isso representa 46 milhões de brasileiros, boa parte desses em idade escolar. Assim como na década de 90 se consolidou o Programa Nacional do Livro Didático para apoiar a universalização e melhoria da qualidade da educação básica, agora é urgente criar um programa de acesso aos recursos digitais para impedir que a exclusão da escola e da aprendizagem alcance a maioria dos estudantes. O acesso aos recursos digitais para professores e estudantes resolve-se com política pública, ainda que o Estado possa contar com apoio externo para isso.     

 

Instituto Alcoa: Como você enxerga o ensino híbrido enquanto alternativa para dar continuidade à educação durante a pandemia? 

Maria: Com essa forma de ensino, é importante perguntar: será que, a partir dos recursos digitais, estamos produzindo experiências inovadoras e construindo técnicas de mediação que auxiliem os estudantes a ativar múltiplas formas de inteligência, como uma alternativa às metodologias tradicionais de ensino e aprendizagem? Antes de responder, é importante observar a exposição exaustiva a telas de celulares, tablets, computadores e a prática de chamadas de vídeo com a turma, com câmeras e microfones ligados. Para os que estão realmente interessados no ensino híbrido, é preciso deixar o improviso de lado e partir para a construção criativa, que transforme ideias em realidade. Experiências que ajudem crianças, adolescentes e jovens no desenvolvimento de habilidades, conhecimentos, atitudes e valores para lidarem com as tecnologias emergentes. Isso cabe aos professores e às escolas, mas também às equipes e centros de formações das secretarias de educação, aos laboratórios de didática das universidades e aos que pesquisam sobre cultura digital. 

 

Instituto Alcoa: Uma das frentes de atuação do programa Ecoa, do Instituto Alcoa, é a formação de professores. Por que é importante investir na formação inicial e continuada de educadores? Qual impacto esse investimento pode ter na educação? 

Maria: Diante do abalo sofrido pela escola e do retrocesso que já se constata na aprendizagem dos estudantes por conta da pandemia, muito se espera dos professores no sentido de estarem preparados para enfrentar novas demandas, de superar desafios complexos e de construir soluções novas, que minimizem as perdas sofridas pelos que foram mais prejudicados com o fechamento das escolas. Por isso, mais do que nunca é preciso investir na formação docente, tanto inicial quanto continuada.  

 

Instituto Alcoa: Quais tipos de programas de formação de professores são os mais indicados?

Maria:É importante ter em mente que não existem soluções simples, únicas e de curto prazo para resolver problemas complexos. São importantes os projetos que consideram a formação continuada de professores como um processo permanente e integrante da atividade cotidiana e da trajetória docente, de modo que estes possam incorporar melhorias no seu desempenho continuamente. A ideia é apoiar as formações que apostam na construção de novas práticas e na experimentação para ver o que funciona e que ajudem a construir um modelo vivo de aprendizagem integradora, que junte teoria e prática e que aproxime o pensar do viver e, a partir disso, poder disseminá-los ou adaptá-los para serem aplicados em outras realidades. 

 

Instituto Alcoa: Qual é a importância de parcerias entre poder público, organizações da sociedade civil e iniciativa privada para promoção de uma educação de qualidade no Brasil? 

Maria: Se antes da pandemia, as parcerias por uma educação de qualidade faziam sentido, neste momento elas ganham maior relevância e legitimidade. A Covid tem provocado uma profunda reorganização da colaboração social, não apenas no sentido de arrecadar recursos para atender necessidades imediatas das populações mais vulneráveis, mas também para interpelar, junto ao poder público, em favor da criação de políticas que garantam direitos básicos, entre os quais se inclui a educação.  

Certamente cabe ao Estado estar à frente na garantia do bem de todos e, para isso, ele precisa dar diretrizes, traçar objetivos e metas, criar políticas e oferecer as condições para que elas se concretizem. Mas é fato que, para serem efetivas, essas políticas precisam ser conduzidas por atores que estão tanto dentro quanto fora do Estado. Por isso, na situação de pandemia, ganha legitimidade o princípio de que o Estado tem papel fundamental na garantia de direitos à educação e, para cumprir com seu papel, ele precisa contar com a colaboração das organizações e setor privado.  

 

Instituto Alcoa: Como institutos que já atuam na área - como o Instituto Alcoa - ou outras instituições podem fortalecer a agenda da educação a partir de agora? E no pós-pandemia? 

Maria: No contexto brasileiro, ainda que tenhamos muitas controvérsias em relação aos encaminhamentos da educação, o papel das organizações sociais e da iniciativa privada será tanto o de colaborar quanto o de pressionar os agentes públicos a tomarem as melhores decisões em prol de uma educação mais justa e igualitária. Além disso, devem olhar para as oportunidades, possibilidades de colaboração e para a construção de inovações que possam ser incorporadas em políticas públicas de médio e longo prazos.

Um primeiro passo para a iniciativa privada é conhecer as realidades onde os apoiadores pretendem atuar e identificar, na rede de ensino ou na escola, o que ela não conseguirá fazer sozinha. A partir daí, o apoio poderá ser na realização de diagnósticos rápidos, na identificação de prioridades, em orientação para formular planos de ação de curto e médio prazos, com estabelecimento de objetivos, metas e ações afirmativas que promovam qualidade e equidade. É fundamental garantir o protagonismo do poder público na condução desses planos e fortalecê-los para que não sofram descontinuidade.

Outros pontos importantes são: apoiar programas de formação de professores e equipes de escolas e incentivar debates e reflexões sobre as questões pedagógicas e didáticas do processo de ensino e aprendizagem, sobre a avaliação de resultados de aprendizagem, as relações interpessoais, além de criar, experimentar e adaptar novas metodologias que possam ser aplicadas em escala, sobretudo metodologias de ensino híbrido. Outro aspecto que precisa ser intensificado são os processos de avaliação de práticas pedagógicas, didáticas, de gestão, para saber o que efetivamente funciona e o investimento na realização de pesquisas que tragam insumos e bases sólidas para a construção de novas metodologias educacionais e nos ajudem na compreensão dos fatores ligados à escola que geram desigualdades educacionais.

Embora o pós-pandemia ainda seja algo incerto, sabemos que a escola, na sua forma de organização e funcionamento, não voltará a ser o que era. Mudanças já estão sendo postas em curso, mesmo que a escola ainda não saiba todas as respostas para os desafios, tanto os conhecidos quanto os novos.